Por uma política das generosidades
Christine Greiner
Na última década tive a oportunidade de viajar pelo Brasil para dar
palestras e pequenos cursos, conhecendo cidades das quais nunca sequer havia
ouvido falar. Essas experiências me mobilizaram a pensar em algumas coisas
relacionadas a pesquisa de criação em dança, dentro e fora de São Paulo (a
cidade onde vivo e trabalho). Também me fizeram prestar atenção no que
Boaventura de Souza Santos chama de ecologia dos saberes – uma estratégia
marcada pela ausência de teorias gerais e por uma politica das generosidades
que desafiaria o paradigma dominante da imunização que marca a cultura
narcísica gerencial.
Se existe uma artista com quem estas questões dialogam (e com quem gostaria
de compartilhá-las) é Claudia Muller. Alguns dos projetos que Claudia vem
desenvolvendo nos últimos anos como Dança em Domicílio são, a meu ver,
experiências potentes que apontam novos caminhos de vitalização da arte nas
suas conexões com a vida cotidiana.
Não é nenhuma novidade constatar que o Brasil é muito grande e cheio de
diversidades. Mas nem sempre é evidente a necessidade de escapar de toda e
qualquer hegemonia que ameace padronizar os modos como a dança pode ser
pesquisada, assim como as teorias gerais -- aquelas que serviriam para todo e
qualquer contexto e experiência.
Por isso tenho me perguntado como poderíamos criar essa tal ecologia de
saberes para que as experiências de dança sejam estudadas a partir dos
diferentes contextos com as suas próprias particularidades. Com isso, não estou
propondo a identificação de diferentes matrizes, origens ou essências
regionais, nem tampouco a noção de paradigma proposta por Thomas Kuhn nos anos
1960, que dizia respeito a um certo modo fundamental de entender a ciência e
que poderia sugerir “um modo fundamental de entender a dança”.
Para entender melhor esse modo de pensar, ajuda adotar novos vocábulos como
redes, cartografias e sistemas abertos.
Isso porque, quando descrevemos ambientes com estes termos, sinalizamos
que eles nunca estão prontos e dados a
priori, pois emergem de situações específicas e são norteados por uma
lógica de acontecimentos e não pelos fatos considerados oficiais ou “típicos”
daquele local.
O método sempre emerge de uma prática. Por isso não é propriamente uma
aplicação ou sistematização de uma teoria já constituída (e aparentemente
pronta). Ele é prático como exercício do pensamento e acionado não apenas pelas
ações do cérebro mas no trânsito destes acionamentos com as nossas ações no
mundo. Isso nada mais é do que o modo como o pensamento se constitui, sempre a
partir do movimento e em trânsito com o ambiente.
É importante observar que há sempre uma inabilidade para separar o método
do contexto onde está, então todo tipo de escolha que fazemos sempre envolve
uma tradução, uma estratégia adaptativa que implica na singularidade dos
vínculos que criamos com o onde estamos/ onde nos formamos.
Como aponta Agamben, em sintonia com outros autores (sobretudo Foucault)
que desconfiaram de tudo aquilo que costuma ser chamado de origem ou raiz, nós
nos constituímos no processo de sujeição aos dispositivos de poder aos quais
estamos expostos. Eles podem ser de ordem institucional (academia, clinica,
prisão), psicológica (memória, traumas), afetiva (na relação com o outro) e
assim por diante.
Neste contexto, as molduras téoricas e a linguagem também são dispositivos
de poder que norteiam de modo significativo os sistemas de pensamento, por isso
não devem ser usadas de modo aleatório ou automático.
“Somente o pensamento que não oculta o que não é dito,
mas usa isso para se elaborar, é que pode clamar por sua originalidade”
Agamben (2009:8).
Assim, é possível incluir a singularidade como traço constituinte do
pensamento sem banalizar ou neutralizar o que é diferente. Lidar com a
precariedade, com a descontinuidade, com a falta de palavras que as vezes nos
acomete, com os movimentos pouco visíveis e com as narrativas inconscientes que
fazem parte deste processo.
Uma boa parte dessas discussões surgiu por conta das discussões políticas,
das redefinições de história, dos estudos da relação corpo-mente e da ênfase
nas dificuldades de lidar com a alteridade em diversos níveis.
Penso nas experiências de dança de Claudia Muller. Para desenvolver uma
pesquisa em dança tem se tornado cada vez mais importante reconhecer o diagrama
dos mecanismos de poder e os modos como podem ser representados. Eles muitas
vezes reincidem, uma vez que a historia dos acontecimentos e das experiências
não é seqüencial e determinista (no sentido de que o que vem antes determina o
que vem depois). É como se, argumentando de outra maneira, fosse importante
perceber que operador que mobiliza cada pesquisa (as principais inquietações),
para a partir daí construir uma rede de visibilidades expondo as principais
conexões e desdobramentos. É isso que Claudia tem feito. Nem sempre tudo é
explícito como um “tema”. A exposição do que seria tratado como um “assunto”
despreza a dicotomia forma e conteúdo, agindo por similaridade. Trata-se de uma
dança que não fala de alguma coisa, mas é tomada pela “coisa”.
Ao entender melhor como funciona a relação com o ambiente através de
habilidades como percepção, memória, consciência e imitação, percebe-se que nem
todos os métodos e formulações continuam fazendo sentido. Como não há nada
pronto (nem o sujeito, nem a cultura, nem a historia, nenhuma essência, nem
identidade), as técnicas de dança e as
coreografias, assim como as teorias, são reinventadas a cada vez que se
implementam. A noção de continuidade e permanência de parâmetros da historia
sempre esteve ligada à soberania do sujeito. O sujeito que controla é,
supostamente, aquele que sabe. Por isso,
a descontinuidade anônima do saber permaneceu excluída do discurso e rejeitada como
impensável. Pagamos um preço alto por isso e o seu reconhecimento recente pede
por novas formulações e metodologias.
Nada disso me parece contraditório em relação à proposta de criar uma
ecologia de saberes. Existe um mal estar nas fraturas dos processos cognitivos
que indaga quem somos em espaços específicos, atestando uma desconfiança do
mundo globalizado. Temos uma participação neste mundo globalizado que por vezes
parece subordinada a este geral fictício, dramatizando as diferenças e
bloqueando a criação de cumplicidades. Esta é uma característica reincidente
entre povos que foram colonizados que sempre sofrem um déficit de representação
em nome próprio.
Parecemos viver a contingência de viver a nossa experiência sempre no
reverso da experiência dos outros. Se essa contingência for vivida como uma
espécie de vigilância epistemológica, acaba impossibilitando a elaboração de
uma teoria crítica. É difícil evitar o tempo da repetição, que é o que permite
ao presente alastrar-se ao passado e ao futuro canibalizando-os. O problema
mais grave deste tipo de atitude é que algumas vezes repetimos esse jogo de
poder com aqueles que, supostamente, deveriam ser nossos pares e a operação
presa-predador deixa de ser o modelo entre colonizadores e colonizados, sendo
internalizada entre os próprios colonizados que inauguram disputas sucessivas
entre si.
Autores como Santos e Homi Bhabha (2003) identificam os modos como foram
criados vários nomes de movimentos em sentido ao futuro como revolução,
progresso, evolução, mas parece que o desfecho das lutas nunca é
pré-determinado. Então toda a dificuldade para pensar transformação social e
elucidação reside no colapso de teorias da história que nos trouxeram até aqui.
Uma série de pressupostos foram erodidos e não tem mais credibilidade.
Infelizmente, a incapacitação do futuro não assegura a capacitação do passado.
É por isso que não faz sentido pensar na transformação e na emancipação sem
reinventar o passado.
O risco da imunização
“No que cessam
as batalhas físicas irrompem as guerras metafóricas”
Peter Sloterdijk,
(2012:57)
Para entender um pouco mais sobre a importância das metáforas da
imunização na política, a pesquisa de
Roberto Esposito (2010) tem sido fundamental, uma vez que este autor relaciona
a tendência à imunidade com a formação (e o impedimento da formação) de
comunidades. Esposito indaga se a relação imunidade-comunidade é de
justaposicão ou de contraste ou ainda se esta relação não é parte de um
movimento maior em que cada termo é inscrito reciprocamente na lógica do outro.
Segundo este autor, a empatia entre imunidade e identidade individual
emerge quando a imunidade conota o significado pelo qual o indivíduo é
defendido dos efeitos expropriativos da comunidade, protegendo aquele que tem a
possibilidade de se defender do risco do contato com o outro. O risco a que
Esposito se refere é o risco da perda de identidade, como já havia sido
discutido por cientistas como Francisco Varela e outros no âmbito da
neurofilosofia (ver Greiner 2005). Em termos políticos, a imunidade pressupõe a
comunidade mas também a nega. Isso porque, para sobreviver, toda comunidade é
forçada a introjetar a negatividade da sua própria oposição que, por sua vez,
permanece como o modo contrastante de ser da própria comunidade. É na
introjeção da imunidade, diz Esposito, que se forma a base da biopolítica
moderna. O sujeito moderno que goza de direitos políticos e civis representa,
ele mesmo, uma tentativa de obter imunidade a partir do contágio da
possibilidade de se formar a comunidade. Esta tentativa de imunizar o indivíduo
daquilo que é comum, termina por colocar em risco a própria comunidade, ao
mesmo tempo, como uma virada imunizada sobre si mesmo e seu elemento
constituinte.
Esta é apenas uma, entre tantas outras ambivalências que permeiam a
discussão ontológica e epistemológica da identidade, da subjetividade e do
reconhecimento sistêmico do si-mesmo.
O pode r soberano, tão discutido
por Agamben na sua trilogia sobre o homo
sacer, imunizaria a comunidade do seu próprio excesso, como se nota no
desejo de adquirir bens do outro, assim como, em toda a violência implicada
nesta relação. Isso porque, a imunidade que está na linguagem politico-jurídica
alude a uma isenção temporária ou definitiva do sujeito em relação a obrigações
concretas ou responsabilidades que dentro de circunstâncias normais vinculariam
um sujeito aos outros. Ao invés de justapor ou impor uma forma externa que
sujeita um ao domínio do outro, o paradigma de imunização emerge como dois
elementos constituintes de um mesmo todo indivisível que assume significados a
partir das suas interrelações. Não se trata apenas de juntar vida e poder. A
imunidade é o poder de preservar a vida. E não existe poder externo à vida,
assim como a vida nunca está fora das relações de poder.
Por isso a noção de imunidade está na intersecção biologia e política,
ligando vida e lei. Imunidade alude na linguagem juridico-politica à dispensa
da parte do sujeito para olhar obrigações concretas ou responsabilidades que em
circunstancias normais ligam uma à outra. Alguns termos políticos são
derivações da biologia como organismo e constituição. A imunidade é o poder de
preservar a vida. A política é o instrumento para manter “in vita la vita”.
Assim, a categoria da imunização abre duas declinações para o paradigma
político: um afirmativo e outro letal. O poder tanto nega como aguça o
desenvolvimento da vida.
Neste contexto, discute-se politicamente a metáfora da pratica de vacinação
introduzindo algo em relação ao qual se quer que o corpo político se proteja. A
etimologia do termo immunitas é o
negativo da forma privada de communitas.
Se communitas implica um vinculo
entre os seus membros, uma obrigação de doação recíproca, immunitas é uma condição que dispensa esta obrigação e exonera o
ônus da relação. A imunidade recupera o que foi arriscado pelo comum e implica
na substituição ou em uma oposição entre o privado e uma forma de organização
comunitária.
Durante a participação em
bancas de editais de arte, os sintomas que envolvem o processo de descoberta de
tudo isso são evidentes. Institui-se um jogo (quase sempre não deliberado) que
visa a aprovação dos projetos, seguindo padrões e modelos que muitas vezes
sacrificam o próprio projeto. Ou seja,
para adequá-lo a regras (nem sempre deliberadas), o artista busca em primeiro
lugar atender às expectativas de uma comissão que ele ainda não sabe qual será.
Para tanto, nem sempre consegue efetivamente se colocar no texto que escreve. A
comissão, muitas vezes, é integrada por artistas premiados em outras edições
que, ao se encontrarem no papel de júri (e não mais de avaliados), lidam com as
regras de avaliação de forma surpreendentemente radical. Cria-se o que Primo
Levi identificava como zona cinzenta, ou seja, uma zona de indistinção entre
amigos e inimigos. Nesta situação, a operação de imunização entre os
concorrentes torna-se cada vez mais explícita. É absolutamente prioritário
administrar as próprias necessidades. Essa é a regra que vale acima de todas as
outras.
Este pensamento gerencial
das “próprias necessidades” ocupa um lugar bastante significativo promovendo
uma obstrução no que poderia ser a reflexão de uma política cultural mais ampla
e menos imunizada.
O problema é que nesta
rede, estamos todos implicados: os que
concorrem, os que julgam, os que ganham e os que perdem. Para construir
conhecimento precisa de tempo. Se há
suporte financeiro, a pesquisa tem condições de ser desenvolvida. Se não há, o
único modo de seguir é resistindo, resolvendo todas as etapas da forma que o
cotidiano permite.
Isso tem acometido a todos que trabalham com produção e criação, seja na
forma de coreografias, concepção de treinamentos, análise de obras, inserção no
mercado ou discussões epistemológicas. Não vejo nenhuma possibilidade de
solução isenta, com tendências gerais ou imparciais. E para lidar com o viés político (e
inevitável) da situação, será preciso enfrentar um fenômeno que sempre esteve
presente na lógica tradicional (e importada do norte) dos procedimentos de
pesquisa e criação : o narcisismo.
Não sem motivos, o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro tem discutido a possibilidade de um
método anti-narciso que teria como mote pensar antes no coletivo, desafiando a
dualidade sujeito-objeto que vê no outro sempre um objeto (de estudo, de
avaliação, de submissão, de auto-afirmação).
Viveiros de Castro detectou aí um ponto de inflexão a ser trabalhado por
todos nós. Quando nos sentimos todos desqualificados e sem recursos, não é nada
evidente privilegiar a comunidade, mas talvez seja a nossa única saída.
Infelizmente, também neste
caso, não há como propor procedimentos gerais ou critérios universais de
valoração e comportamento. O filósofo alemão Peter Sloterdijk menciona uma
“economia das generosidades” que também me parece ser uma “política de
generosidades” uma vez que estas duas instancias são cada vez mais
inseparáveis.
Este termo me intrigou porque constitui-se como um dispositivo de poder que
guarda uma ambivalência perturbadora. Isso porque, ao invés de voltar-se para
dentro e alimentar apenas a si mesmo, oikos
(casa), abre-se para a vida com a especificidade “das generosidades”.
Seria possível prever uma nova modalidade de economia cuja matéria a ser
distribuída e gerenciada teria no capital afetivo a sua fonte de riqueza?
Seria um ponto de partida para esta economia política das generosidades
entrar na casa do outro, ouvir o outro, reconhecê-lo, dançar para um estranho?
Bibliografia
Agamben Giorgio The Signature of All
Things. New York: Zone Books, 2008.
Bhabha Homi O Local da Cultura.
Belo Horizonte: UFMG, 2003
Espósito Roberto Communitas, the
origini and destiny of community.Stanford University Press, 2010.
Greiner Christine O Corpo em Crise,
novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume,
2010.
Santos, Boaventura de Souza e Maria Paula Meneses (orgs) Epistemologias do Sul. São Paulo:
Cortez, 2010.
Sloterdijk Peter A Ira e o tempo.
São Paulo:Estação Liberdade, 2012.
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