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quarta-feira, 4 de março de 2015

Por uma política de generosidades



Por uma política das generosidades
Christine Greiner

Na última década tive a oportunidade de viajar pelo Brasil para dar palestras e pequenos cursos, conhecendo cidades das quais nunca sequer havia ouvido falar. Essas experiências me mobilizaram a pensar em algumas coisas relacionadas a pesquisa de criação em dança, dentro e fora de São Paulo (a cidade onde vivo e trabalho). Também me fizeram prestar atenção no que Boaventura de Souza Santos chama de ecologia dos saberes – uma estratégia marcada pela ausência de teorias gerais e por uma politica das generosidades que desafiaria o paradigma dominante da imunização que marca a cultura narcísica gerencial.
Se existe uma artista com quem estas questões dialogam (e com quem gostaria de compartilhá-las) é Claudia Muller. Alguns dos projetos que Claudia vem desenvolvendo nos últimos anos como Dança em Domicílio são, a meu ver, experiências potentes que apontam novos caminhos de vitalização da arte nas suas conexões com a vida cotidiana.  
Não é nenhuma novidade constatar que o Brasil é muito grande e cheio de diversidades. Mas nem sempre é evidente a necessidade de escapar de toda e qualquer hegemonia que ameace padronizar os modos como a dança pode ser pesquisada, assim como as teorias gerais -- aquelas que serviriam para todo e qualquer contexto e experiência.
Por isso tenho me perguntado como poderíamos criar essa tal ecologia de saberes para que as experiências de dança sejam estudadas a partir dos diferentes contextos com as suas próprias particularidades. Com isso, não estou propondo a identificação de diferentes matrizes, origens ou essências regionais, nem tampouco a noção de paradigma proposta por Thomas Kuhn nos anos 1960, que dizia respeito a um certo modo fundamental de entender a ciência e que poderia sugerir “um modo fundamental de entender a dança”.  
Para entender melhor esse modo de pensar, ajuda adotar novos vocábulos como redes, cartografias e sistemas abertos.  Isso porque, quando descrevemos ambientes com estes termos, sinalizamos que eles nunca estão prontos e dados a priori, pois emergem de situações específicas e são norteados por uma lógica de acontecimentos e não pelos fatos considerados oficiais ou “típicos” daquele local.
O método sempre emerge de uma prática. Por isso não é propriamente uma aplicação ou sistematização de uma teoria já constituída (e aparentemente pronta). Ele é prático como exercício do pensamento e acionado não apenas pelas ações do cérebro mas no trânsito destes acionamentos com as nossas ações no mundo. Isso nada mais é do que o modo como o pensamento se constitui, sempre a partir do movimento e em trânsito com o ambiente.
É importante observar que há sempre uma inabilidade para separar o método do contexto onde está, então todo tipo de escolha que fazemos sempre envolve uma tradução, uma estratégia adaptativa que implica na singularidade dos vínculos que criamos com o onde estamos/ onde nos formamos.
Como aponta Agamben, em sintonia com outros autores (sobretudo Foucault) que desconfiaram de tudo aquilo que costuma ser chamado de origem ou raiz, nós nos constituímos no processo de sujeição aos dispositivos de poder aos quais estamos expostos. Eles podem ser de ordem institucional (academia, clinica, prisão), psicológica (memória, traumas), afetiva (na relação com o outro) e assim por diante.
Neste contexto, as molduras téoricas e a linguagem também são dispositivos de poder que norteiam de modo significativo os sistemas de pensamento, por isso não devem ser usadas de modo aleatório ou automático.

“Somente o pensamento que não oculta o que não é dito, mas usa isso para se elaborar, é que pode clamar por sua originalidade”
Agamben (2009:8).

Assim, é possível incluir a singularidade como traço constituinte do pensamento sem banalizar ou neutralizar o que é diferente. Lidar com a precariedade, com a descontinuidade, com a falta de palavras que as vezes nos acomete, com os movimentos pouco visíveis e com as narrativas inconscientes que fazem parte deste processo.

Uma boa parte dessas discussões surgiu por conta das discussões políticas, das redefinições de história, dos estudos da relação corpo-mente e da ênfase nas dificuldades de lidar com a alteridade em diversos níveis.

Penso nas experiências de dança de Claudia Muller. Para desenvolver uma pesquisa em dança tem se tornado cada vez mais importante reconhecer o diagrama dos mecanismos de poder e os modos como podem ser representados. Eles muitas vezes reincidem, uma vez que a historia dos acontecimentos e das experiências não é seqüencial e determinista (no sentido de que o que vem antes determina o que vem depois). É como se, argumentando de outra maneira, fosse importante perceber que operador que mobiliza cada pesquisa (as principais inquietações), para a partir daí construir uma rede de visibilidades expondo as principais conexões e desdobramentos. É isso que Claudia tem feito. Nem sempre tudo é explícito como um “tema”. A exposição do que seria tratado como um “assunto” despreza a dicotomia forma e conteúdo, agindo por similaridade. Trata-se de uma dança que não fala de alguma coisa, mas é tomada pela “coisa”.
Ao entender melhor como funciona a relação com o ambiente através de habilidades como percepção, memória, consciência e imitação, percebe-se que nem todos os métodos e formulações continuam fazendo sentido. Como não há nada pronto (nem o sujeito, nem a cultura, nem a historia, nenhuma essência, nem identidade),  as técnicas de dança e as coreografias, assim como as teorias, são reinventadas a cada vez que se implementam. A noção de continuidade e permanência de parâmetros da historia sempre esteve ligada à soberania do sujeito. O sujeito que controla é, supostamente, aquele que sabe.  Por isso, a descontinuidade anônima do saber permaneceu excluída do discurso e rejeitada como impensável. Pagamos um preço alto por isso e o seu reconhecimento recente pede por novas formulações e metodologias.

Nada disso me parece contraditório em relação à proposta de criar uma ecologia de saberes. Existe um mal estar nas fraturas dos processos cognitivos que indaga quem somos em espaços específicos, atestando uma desconfiança do mundo globalizado. Temos uma participação neste mundo globalizado que por vezes parece subordinada a este geral fictício, dramatizando as diferenças e bloqueando a criação de cumplicidades. Esta é uma característica reincidente entre povos que foram colonizados que sempre sofrem um déficit de representação em nome próprio.
Parecemos viver a contingência de viver a nossa experiência sempre no reverso da experiência dos outros. Se essa contingência for vivida como uma espécie de vigilância epistemológica, acaba impossibilitando a elaboração de uma teoria crítica. É difícil evitar o tempo da repetição, que é o que permite ao presente alastrar-se ao passado e ao futuro canibalizando-os. O problema mais grave deste tipo de atitude é que algumas vezes repetimos esse jogo de poder com aqueles que, supostamente, deveriam ser nossos pares e a operação presa-predador deixa de ser o modelo entre colonizadores e colonizados, sendo internalizada entre os próprios colonizados que inauguram disputas sucessivas entre si.
Autores como Santos e Homi Bhabha (2003) identificam os modos como foram criados vários nomes de movimentos em sentido ao futuro como revolução, progresso, evolução, mas parece que o desfecho das lutas nunca é pré-determinado. Então toda a dificuldade para pensar transformação social e elucidação reside no colapso de teorias da história que nos trouxeram até aqui. Uma série de pressupostos foram erodidos e não tem mais credibilidade. Infelizmente, a incapacitação do futuro não assegura a capacitação do passado. É por isso que não faz sentido pensar na transformação e na emancipação sem reinventar o passado.

O risco da imunização
“No que cessam as batalhas físicas irrompem as guerras metafóricas”
Peter Sloterdijk, (2012:57)

Para entender um pouco mais sobre a importância das metáforas da imunização na política, a  pesquisa de Roberto Esposito (2010) tem sido fundamental, uma vez que este autor relaciona a tendência à imunidade com a formação (e o impedimento da formação) de comunidades. Esposito indaga se a relação imunidade-comunidade é de justaposicão ou de contraste ou ainda se esta relação não é parte de um movimento maior em que cada termo é inscrito reciprocamente na lógica do outro.
Segundo este autor, a empatia entre imunidade e identidade individual emerge quando a imunidade conota o significado pelo qual o indivíduo é defendido dos efeitos expropriativos da comunidade, protegendo aquele que tem a possibilidade de se defender do risco do contato com o outro. O risco a que Esposito se refere é o risco da perda de identidade, como já havia sido discutido por cientistas como Francisco Varela e outros no âmbito da neurofilosofia (ver Greiner 2005). Em termos políticos, a imunidade pressupõe a comunidade mas também a nega. Isso porque, para sobreviver, toda comunidade é forçada a introjetar a negatividade da sua própria oposição que, por sua vez, permanece como o modo contrastante de ser da própria comunidade. É na introjeção da imunidade, diz Esposito, que se forma a base da biopolítica moderna. O sujeito moderno que goza de direitos políticos e civis representa, ele mesmo, uma tentativa de obter imunidade a partir do contágio da possibilidade de se formar a comunidade. Esta tentativa de imunizar o indivíduo daquilo que é comum, termina por colocar em risco a própria comunidade, ao mesmo tempo, como uma virada imunizada sobre si mesmo e seu elemento constituinte.
Esta é apenas uma, entre tantas outras ambivalências que permeiam a discussão ontológica e epistemológica da identidade, da subjetividade e do reconhecimento sistêmico do si-mesmo.
O pode  r soberano, tão discutido por Agamben na sua trilogia sobre o homo sacer, imunizaria a comunidade do seu próprio excesso, como se nota no desejo de adquirir bens do outro, assim como, em toda a violência implicada nesta relação. Isso porque, a imunidade que está na linguagem politico-jurídica alude a uma isenção temporária ou definitiva do sujeito em relação a obrigações concretas ou responsabilidades que dentro de circunstâncias normais vinculariam um sujeito aos outros. Ao invés de justapor ou impor uma forma externa que sujeita um ao domínio do outro, o paradigma de imunização emerge como dois elementos constituintes de um mesmo todo indivisível que assume significados a partir das suas interrelações. Não se trata apenas de juntar vida e poder. A imunidade é o poder de preservar a vida. E não existe poder externo à vida, assim como a vida nunca está fora das relações de poder. 
Por isso a noção de imunidade está na intersecção biologia e política, ligando vida e lei. Imunidade alude na linguagem juridico-politica à dispensa da parte do sujeito para olhar obrigações concretas ou responsabilidades que em circunstancias normais ligam uma à outra. Alguns termos políticos são derivações da biologia como organismo e constituição. A imunidade é o poder de preservar a vida. A política é o instrumento para manter “in vita la vita”.
Assim, a categoria da imunização abre duas declinações para o paradigma político: um afirmativo e outro letal. O poder tanto nega como aguça o desenvolvimento da vida.
Neste contexto, discute-se politicamente a metáfora da pratica de vacinação introduzindo algo em relação ao qual se quer que o corpo político se proteja. A etimologia do termo immunitas é o negativo da forma privada de communitas. Se communitas implica um vinculo entre os seus membros, uma obrigação de doação recíproca, immunitas é uma condição que dispensa esta obrigação e exonera o ônus da relação. A imunidade recupera o que foi arriscado pelo comum e implica na substituição ou em uma oposição entre o privado e uma forma de organização comunitária.

            Durante a participação em bancas de editais de arte, os sintomas que envolvem o processo de descoberta de tudo isso são evidentes. Institui-se um jogo (quase sempre não deliberado) que visa a aprovação dos projetos, seguindo padrões e modelos que muitas vezes sacrificam o próprio projeto.  Ou seja, para adequá-lo a regras (nem sempre deliberadas), o artista busca em primeiro lugar atender às expectativas de uma comissão que ele ainda não sabe qual será. Para tanto, nem sempre consegue efetivamente se colocar no texto que escreve. A comissão, muitas vezes, é integrada por artistas premiados em outras edições que, ao se encontrarem no papel de júri (e não mais de avaliados), lidam com as regras de avaliação de forma surpreendentemente radical. Cria-se o que Primo Levi identificava como zona cinzenta, ou seja, uma zona de indistinção entre amigos e inimigos. Nesta situação, a operação de imunização entre os concorrentes torna-se cada vez mais explícita. É absolutamente prioritário administrar as próprias necessidades. Essa é a regra que vale acima de todas as outras.  
            Este pensamento gerencial das “próprias necessidades” ocupa um lugar bastante significativo promovendo uma obstrução no que poderia ser a reflexão de uma política cultural mais ampla e menos imunizada.
            O problema é que nesta rede, estamos todos implicados:  os que concorrem, os que julgam, os que ganham e os que perdem. Para construir conhecimento precisa de  tempo. Se há suporte financeiro, a pesquisa tem condições de ser desenvolvida. Se não há, o único modo de seguir é resistindo, resolvendo todas as etapas da forma que o cotidiano permite.
Isso tem acometido a todos que trabalham com produção e criação, seja na forma de coreografias, concepção de treinamentos, análise de obras, inserção no mercado ou discussões epistemológicas. Não vejo nenhuma possibilidade de solução isenta, com tendências gerais ou imparciais.  E para lidar com o viés político (e inevitável) da situação, será preciso enfrentar um fenômeno que sempre esteve presente na lógica tradicional (e importada do norte) dos procedimentos de pesquisa e criação : o narcisismo.
            Não sem motivos, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro tem discutido a possibilidade de um método anti-narciso que teria como mote pensar antes no coletivo, desafiando a dualidade sujeito-objeto que vê no outro sempre um objeto (de estudo, de avaliação, de submissão, de auto-afirmação).
Viveiros de Castro detectou aí um ponto de inflexão a ser trabalhado por todos nós. Quando nos sentimos todos desqualificados e sem recursos, não é nada evidente privilegiar a comunidade, mas talvez seja a nossa única saída.
            Infelizmente, também neste caso, não há como propor procedimentos gerais ou critérios universais de valoração e comportamento. O filósofo alemão Peter Sloterdijk menciona uma “economia das generosidades” que também me parece ser uma “política de generosidades” uma vez que estas duas instancias são cada vez mais inseparáveis.
Este termo me intrigou porque constitui-se como um dispositivo de poder que guarda uma ambivalência perturbadora. Isso porque, ao invés de voltar-se para dentro e alimentar apenas a si mesmo, oikos (casa), abre-se para a vida com a especificidade “das generosidades”. 

Seria possível prever uma nova modalidade de economia cuja matéria a ser distribuída e gerenciada teria no capital afetivo a sua fonte de riqueza?

Seria um ponto de partida para esta economia política das generosidades entrar na casa do outro, ouvir o outro, reconhecê-lo, dançar para um estranho?

Bibliografia
Agamben Giorgio The Signature of All Things. New York: Zone Books, 2008.
Bhabha Homi O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003
Espósito Roberto Communitas, the origini and destiny of community.Stanford University Press, 2010.
Greiner Christine O Corpo em Crise, novas pistas e o curto-circuito das representações. São Paulo: Annablume, 2010.
Santos, Boaventura de Souza e Maria Paula Meneses (orgs) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
Sloterdijk Peter A Ira e o tempo. São Paulo:Estação Liberdade, 2012.