O texto que segue é do escritor Leonardo Marona, que recebeu uma entrega quarta-feira à tarde, ali na Travessa do Ouvidor. Tão especial quando belezas e botas!
"Entes pequenos, o que lhes falta para compreender? Ora, sabem os senhores,
sabem que sem o inglês a humanidade ainda pode viver, sem a Alemanha pode, sem o
homem russo é possível demais, sem a ciência pode, sem o pão pode, só não pode
sem a beleza, porque nada mais restaria a fazer no mundo! Todo segredo está aí,
toda toda a história está aí! A própria ciência não sobreviveria um minuto sem a
beleza (...), ela se converteria em banalidade, não inventaria um prego!" (Os
Demônios, Fiódor Dostoievski)
Talvez a última grande questão dos últimos dois séculos tenha sido: o que
vale mais, Shakespeare ou um par de botas? É um questionamento que nos joga de
cara numa parede sólida de dúvidas e contradições. Uma vez também disseram: "sem
Pushkin pode-se passar, sem botas, não há como". O problema, me parece, é que os
que estão famintos (nos mais múltiplos sentidos) não sabem o que fazer, enquanto
que os que sabem o que fazer estão gordos (geralmente, em poucos, mas
catastróficos sentidos) e bem alimentados, portanto não se mexem.
É plausível que alguém esteja agora pensando: "Mas que diabo isso tem a ver
com dança contemporânea?" Posso responder, tudo, mas quase nada. Explico-me:
Ontem, no meio do trabalho, recebi um presente. Não era uma gravata, uma
caixa de bombom, não era, como dizer, um presente comum, comumente mortificante,
que recebemos cotidianamente e que nos lembram que a vida é comum o tempo todo e
que vamos morrer. Porque, por melhor que seja receber uma gravata ou mesmo uma
caixa de bombom, isso, no fim das contas, te lembra que tu vais morrer. Bom, o
presente foi uma peça de dança no meio de oitenta mil livros, no meio do público
de uma livraria, e para mim especialmente. E, acima de tudo isso, ou seja, acima
da beleza disso, há na minha frente alguém que dança para mim e ao mesmo tempo
me explica politicamente a batalha de quem está na minha frente dançando para
mim. Nisso, voltamos duplamente à primeira questão: da beleza e das botas.
Precisamos comer, usar botas, mesmo um artista (sic), mas acima de tudo um
artista, que é quem nos traz a beleza que torna possível suportar o mundo, este,
mais do que qualquer outro, precisa comer, usar botas.
Ontem voltei e repousei feito uma pluma sobre a velha questão. Não resolvi a
questão, como jamais talvez alguém resolverá. Mas pude ver o problema dentro
dele, agraciado por ele de uma certa forma, porque era a arte que me falava.
que texto lindo, parabens pela escrita e pela alegria viva e política da dança que recebestes.
ResponderExcluirum abraço,
Micheline Torres